15 de fevereiro de 2017

Programa Beija-Flor de Tratamento Descentralizado de Resíduos em Florianópolis-SC, Brasil

Hummingbird Program of Waste Treatment Decentralized in Florianópolis-SC, Brazil


RESUMO
O presente texto é um relato sobre a implantação da coleta seletiva de resíduos em Florianópolis, iniciada em 1986 a partir de um trabalho colaborativo entre a direção da Comcap, o arquiteto Francisco Antônio C. Ferreira, representante do Movimento Ecológico Livre (MEL) e o psicólogo José Luiz Crivelatti de Abreu, professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), que entendiam não ser mais aceitável a continuidade do lançamento dos resíduos da cidade sobre o mangue. Desse entendimento nasceu o Projeto Viva Melhor que, a partir dos resultados alcançados foi institucionalizado na Comcap em 1987 sob a denominação de Programa Beija-Flor. O projeto de pesquisa técnico/comportamental foi implantado simultaneamente em duas comunidades com diferentes estratos sociais e em três prédios localizados na principal avenida de Florianópolis – Av. Jornalista Rubens de Arruda Ramos, também conhecida como Av. Beira Mar Norte.
Palavras-chave: Projeto Viva Melhor. Programa Beija-Flor. Coleta Seletiva em Florianópolis. Lixão do Itacorubi.

ABSTRACT
This paper is a report about the implementation of the management of recyclable waste in Florianopolis, started in 1986 from the collaborative work involving the direction of Comcap, the architect Francisco A. C. Ferreira, representing “Movimento Ecológico Livre” (MEL), and the psychologist José Luiz Crivelatti de Abreu, professor of Federal University of Santa Catarina (UFSC). This comission believed that it was no longer acceptable to continue the disposing of solid waste in Itacorubi´s mangrove and that it was necessary to change the outlook over the waste produced in the city. At that time the Project “Viva Melhor” was born, changing in 1987 to “Beija-Flor” Program. This technical/behavioral research project was introduced simultaneously in two communities with different social classes and in three buildings located on the main avenue of Florianópolis – Av. Jornalista Rubens de Arruda Ramos, also known as Av. Beira Mar Norte.
Keywords: Live Better Project. Hummingbird Program. Selective Collection in Florianópolis. Landfill Itacorubi.

1 INTRODUÇÃO – LIXO UM PROBLEMA CULTURAL
Quando jogamos o maço de cigarro pela janela do carro, quando atiramos o papel de picolé na calçada, ou quando deixamos na areia da praia a latinha de cerveja, estamos simplesmente materializando nosso descompromisso em relação aos resíduos que produzimos. Permitir a continuidade do Lixão do Itacorubi, com todos os prejuízos à vida ali existente, é não se comprometer com a saúde e o bem-estar de nosso povo. Precisamos de uma transformação cultural em relação ao lixo. Lixo é uma riqueza que precisa ser aproveitada. O lixo é de responsabilidade de quem o produz.

O parágrafo supracitado, muito embora tenha sido produzido e publicado no Jornal O Estado, de Florianópolis, em 16 de março de 1987, encerra dois dos fundamentos da Lei nº 12.305/2010 – o reaproveitamento de nossos resíduos e a responsabilidade compartilhada. É o primeiro parágrafo da matéria produzida pelo então Diretor Presidente da Comcap sob o título de Lixo: um problema cultural e publicada no bojo da discussão sobre a implantação de uma planta para a separação dos resíduos em Florianópolis, rejeitada pela comunidade de Santo Antônio de Lisboa, um bairro habitado pela elite intelectual da cidade.

O historiador Oswaldo Rodrigues Cabral, descrevendo a evolução do tratamento dado aos dejetos e “lixo” produzidos em nossa sociedade, assim se refere em sua obra intitulada ‘Nossa Senhora do Desterro’ (1979, v. 1, p. 169-206):
Os primeiros edificadores desta cidade colocaram as casas com a frente para a terra e a parte posterior sobre o mar, de maneira que não havia passagem para a praia. Que significava tal coisa? Que os moradores consideravam um verdadeiro conforto terem o mar ali, à mão, para nele fazerem os seus dejetos... Bastava abrir a porta ou janela, esticar o braço e jogar ao mar toda a imundície da casa. Lixo, fezes... Praia era lugar de despejo, de cachorro morto, de lixo, lugar onde se derramavam vasilhas de matéria fecal, para que tudo se diluísse na maré, para que tudo desaparecesse no refluxo.

Nisso havia o reconhecimento da Câmara Municipal de Desterro (antiga denominação de Florianópolis), pois lá, por volta de 1930, recomendavam que o lixo e dejetos, para não infectar a atmosfera, fossem jogados ao mar.

Entretanto, não só ao mar eram jogados os restos da existência da cidade e seus habitantes transitavam entre valas de esgoto, monturos de lixo e animais domésticos. Já naquela época os recursos do erário eram insuficientes para as demandas da cidade e, em 1855, foi negada a implantação da coleta com duas carroças ao encarregado da higiene, Dr. Hermógenes Miranda Ferreira. Entretanto, as soluções estavam sendo buscadas e a Câmara Municipal autorizou a construção de três pontes de madeira para despejos em frente à cidade, com um comprimento de 40 palmos (9,15 m) cada, livre de corrimãos e com escadas para o mar. Esta situação permaneceu até 1877, quando a Câmara concedeu por vinte anos o primeiro serviço de coleta e destino do lixo da cidade, que era jogado ao mar, na sua periferia.

Com o crescimento da cidade e, consequentemente aumento da sujeira e do mau cheiro, entre os anos de 1910 e 1914 foi construído um incinerador, projetado pelo italiano Alexandre Villa, próximo ao local onde, em 1926, se instalaria a cabeceira insular da Ponte Hercílio Luz. Embora esta fosse uma solução avançada para a época, o crescimento da cidade, incomodada pela fumaça, inviabilizou esta solução e, em 1956, os resíduos da cidade passaram a ser depositados sobre o mangue do Itacorubi. O mangue era considerado um local pestilento, úmido e aterrá-lo com “lixo”, no entendimento dos administradores daquela época, seria uma forma de recuperá-lo, já que àquela altura não era conhecida a importância do mangue como área de amortecimento das marés e de berçário da vida marinha e, muito menos, foram levados em consideração os danos que a deposição de resíduos poderia causar à flora e fauna.

Esta introdução tem o objetivo de contextualizar a situação em relação aos resíduos da cidade quando a administração do município foi assumida, em 1986, pelo Prefeito Edison Andrino de Oliveira. Até aquele momento, a solução reproduzida por diversas vezes, desde o início da colonização, era de colocar o “lixo” longe dos olhos e dos narizes ofendidos.

Após vinte e um anos de regime militar, os movimentos populares haviam se fortalecido, resultando na campanha das ‘Diretas Já’ e, posteriormente, na redemocratização do país. As eleições de 1985 foram realizadas em um ambiente de expectativas por novos tempos por parte da população, que manifestava o desejo de ser partícipe da mudança. Os candidatos assumiram compromissos com a participação popular e, particularmente em Florianópolis, um destes compromissos foi da discussão pública sobre uma solução para o “lixão do Itacorubi”.

Um dos movimentos sociais que se destacava em Florianópolis era o ‘Movimento Ecológico Livre’ (MEL), que surgiu em meados de 1983, atuando na defesa do meio ambiente da capital catarinense, com destaque à proteção do Mangue do Itacorubi. Este movimento professava os princípios do movimento ecologista internacional e, juntamente com lideranças comunitárias, defendia o fechamento do “lixão”.

A administração do município que tomou posse em 03 de janeiro de 1986, apostou em uma mudança cultural em relação ao “lixo” e, já nos encontros preparatórios para o início de sua administração, se discutia a viabilidade da instalação de uma planta de reciclagem na cidade, em que os resíduos secos pudessem ser separados dos orgânicos e estes compostados.

Foi constituída uma comissão multidisciplinar composta por técnicos da Prefeitura, a Companhia Melhoramentos da Capital (Comcap) e a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com o objetivo de discutir e definir estratégias para os problemas de saneamento que a cidade enfrentava. Esta comissão foi dividida em diferentes segmentos, sendo um deles denominado “Comissão do Lixo”.

Foram dois de seus integrantes, o arquiteto Francisco Antônio C. Ferreira, juntamente com o psicólogo José Luiz Crivelatti de Abreu, professor daquela instituição que, em fevereiro 1986, procuraram a direção da Comcap, para discutir uma proposta de tratamento descentralizado de resíduos.

Importante registrar também que o professor José Luiz Crivelatti de Abreu trazia em sua bagagem uma rica experiência sobre mudança de comportamento coletivo, vivida durante seu mestrado na Universidade de São Paulo (USP). Seu estudo fora realizado em uma favela na periferia oeste da cidade de São Paulo, onde habitavam cerca de 6.700 pessoas em péssimas condições de salubridade, em decorrência da grande quantidade de “lixo” (cerca de 66% do total produzido) descartado no interior da comunidade.

A comunhão de interesses do poder público com o conhecimento da Academia (UFSC) foram os ingredientes necessários para a elaboração do Projeto Viva Melhor, que teve como objetivo implantar uma experiência inovadora de tratamento descentralizado de resíduos sólidos urbanos.

2 GÊNESIS DESTE RELATO

Passados vinte e oito anos da concepção do projeto, era natural que muito dele estivesse perdido na memória do tempo. Foram necessárias duas horas de agradável conversa com o Prof. José Luiz Crivelatti de Abreu; a utilização de material produzido pelo Prof. José Luiz que em parte é transcrito no item 6 deste relato – “Considerações Sobre a Iniciativa”; uma busca nos arquivos da Comcap e em textos acadêmicos escritos sobre o projeto, para recuperar parte da história.

Este texto procura resgatar um momento histórico para o tratamento dos resíduos urbanos no Brasil e possibilitou aos protagonistas reviver um momento significativo de suas vidas profissionais, dada a vanguarda da proposta. Um projeto que, ainda hoje, pode ser uma alternativa viável para a solução dos resíduos sólidos urbanos para muitas das cidades brasileiras.

3 O CONCEITO DO PROJETO

Até o início de 1986, em muitas das cidades brasileiras, o destino do “lixo” era colocá-lo o mais distante possível do local de sua produção. É importante salientar que foi somente em 1972, a partir da realização da Primeira Conferência Mundial sobre o Homem e o Meio Ambiente – Conferência de Estocolmo – promovida pela Organização das Nações Unidas (ONU), que o homem começou a se dar conta de que o meio ambiente não era uma fonte inesgotável de recursos e que deveria ser preservado. Mesmo assim, aquela Conferência ficou marcada pela disputa do “desenvolvimento zero”, defendido pelos países desenvolvidos e o “desenvolvimento a qualquer custo”, defendido pelas nações subdesenvolvidas, motivo pelo qual foi, somente no início da década de 1980, que a discussão sobre o meio ambiente foi retomada pela ONU.

A preocupação com a disposição inadequada do “lixo” sobre uma área de mangue e o debate inspirado nas experiências de aproveitamento de resíduos sólidos de países desenvolvidos, como a Alemanha, motivou a discussão sobre a possibilidade de soluções descentralizadas, com o envolvimento das lideranças comunitárias. Entendia-se, já naquela época, que o “lixo” deveria ser assumido como um problema da sociedade que o gerava e que devidamente separado na origem, em três frações – orgânico, seco e rejeito, poderia ser aproveitado gerando riqueza revertida em benefício da comunidade.

Procurava-se, portanto, com a nova proposta, alterar o entendimento vigente de que o compromisso com os resíduos produzidos por cada cidadão terminava com a colocação do “saco de lixo” em frente de sua casa, ou na lixeira do prédio e que, daí em diante, a responsabilidade seria da Prefeitura, independente do destino dado que, no caso, era o pior possível.

A proposta estava baseada na participação popular com o envolvimento das suas lideranças e da comunidade; na separação dos resíduos em secos, orgânicos e rejeitos através da triagem domiciliar; no tratamento dos resíduos orgânicos no local de produção (bairro) através da compostagem; na comercialização dos resíduos secos com a aplicação dos recursos auferidos em ações de interesse da comunidade e na educação ambiental na escola local, com o envolvimento da direção e professores. Visava ainda melhorar a qualidade de vida nos locais de sua implantação e, em particular no caso de Florianópolis, dar fim ao despejo de “lixo” sobre a região de mangue.

4 METODOLOGIA DE ABORDAGEM

A metodologia de abordagem, que assim foi estabelecida:
  • identificação das lideranças locais (religiosas, sociais, comunitárias, sistema escolar etc.);
  • apresentação da proposta para as lideranças e formação da “Comissão de Saneamento”;
  • apresentação da proposta para a comunidade;
  • identificação do local para a guarda de equipamento (quando necessário), dos materiais secos triados, para a compostagem e horta comunitária;
  • designação ou contratação de pessoal;
  • panfletagem nas residências informando a data de início, a periodicidade da coleta e a forma de apresentação dos resíduos;
  • separação no domicílio;
  • coleta alternada ou diária porta a porta, com exceção dos sábados, domingos e feriados;
  • monitoramento com pesagem dos resíduos coletados;
  • dar destino adequado para os materiais;
  • abordagem para corrigir a não participação ou separação incorreta em três componentes: secos, orgânicos e rejeitos; e,
  • educação ambiental continuada na escola e com a comunidade.
5 RESULTADOS DA PRIMEIRA EXPERIÊNCIA

Baseada nestes princípios e metodologia, nascia a primeira experiência de coleta seletiva em uma capital brasileira, iniciada em agosto de 1986. Foram definidos como público alvo, três locais com perfis socioeconômico distintos: a comunidade do Morro do Mocotó – um bolsão de pobreza com 169 casas, que até 1986 não possuía coleta de “lixo”, ocasionando sérios problemas de saúde pública e entupimentos da rede pluvial nas partes baixas da cidade; o Bairro Monte Verde – comunidade de renda média baixa com 427 residências e três prédios na Av. Jornalista Rubens de Arruda Ramos, escolhidos de forma aleatória – os edifícios Renoir, Baía Norte e Beira Mar, todos ocupados por pessoas de alta renda.

5.1 Morro do Mocotó

O Morro do Mocotó está localizado junto ao centro de Florianópolis, no Maciço do Morro da Cruz, é resultado de uma ocupação informal iniciada em 1900. Com a construção da Ponte Hercílio Luz, na década de 1920, no período compreendido de novembro de 1922 a maio de 1926, as lavadeiras que habitavam a região, passaram a cozinhar “mocotó” para os trabalhadores, resultando daí a denominação de Morro do Mocotó.

É, ainda hoje, uma comunidade carente, onde predominam famílias lideradas por mulheres sem companheiros (39,9%), com renda familiar proveniente de trabalhos formais e informais, gerando uma situação apenas de sobrevivência e acarretando, como consequência, problemas socioambientais de toda a natureza.

O serviço de coleta prestado pela Comcap, até julho de 1986, se restringia à colocação de uma caixa do tipo “Brooks” na base do morro, cabendo aos moradores levar a ela os resíduos de suas residências. O resultado é que a maioria do “lixo” era jogado pela janela das cozinhas, possibilitando a proliferação de vetores de contaminação, com as consequências inerentes de comprometimento da saúde pública, assim como o entupimento dos canais de drenagem no próprio morro, como das canalizações nas áreas planas da cidade, provocando alagamentos.

Figura 1 – Comunidade do Morro do Mocotó
Fonte: Caio Cezar, Banco de Dados/ZH – Agosto/2004.

O Projeto teve o apoio da Associação de Moradores, presidida pela Srª Clarita e de religiosas (Irmã Edwiges) que atuavam na comunidade. Para o serviço de coleta optou-se pela contratação de três garis residentes na comunidade (antes de 1988 era possível sem concurso público). Esta solução foi adotada por se entender que, por serem do meio, não só teriam interesse em prestar um serviço de melhor qualidade, como esta condição facilitaria a adesão ao novo sistema de coleta.

A coleta foi precedida de um trabalho na escola local que tinha grande influência sobre a comunidade e de divulgação porta a porta, liderada pelo Presidente da Associação de Moradores. O Arquiteto Francisco Antônio C. Ferreira e o Professor José Luiz Crivelatti de Abreu coordenaram uma pequena equipe de educação ambiental e acompanhavam os garis, auxiliando na divulgação e procedendo a pesagem do material coletado. Em função da ocupação desordenada do morro e da existência de escadarias, a coleta passou a ser realizada com balaios.

Figura 2 – Coleta com balaio
Fonte: Arquivo da Comcap.

A metodologia utilizada para o desenvolvimento do Projeto possibilitou a participação ativa da representação comunitária nas reuniões da “Comissão de Saneamento”, nas atividades de sensibilização da comunidade e na própria implantação do sistema de triagem e de coleta seletiva de resíduos sólidos. Partiu de um dos garis a sugestão da denominação do projeto – Viva Melhor.

A par de todas as dificuldades enfrentadas, em função da necessidade de mudanças dos maus hábitos arraigados na comunidade e dos condicionantes ambientais, ao final de seis meses, que constituiu a fase inicial do Projeto, já era possível ver uma sensível mudança nas condições sanitárias na comunidade e quase 500 Kg de resíduos eram recolhidos diariamente nas 169 residências que participavam regularmente do Projeto. Do resultado da venda dos recicláveis, 30% era destinado ao pagamento dos garis e 70% para a comunidade.

Diferentemente do que se esperava, a quantidade de matéria orgânica no “lixo” recolhido era em pouca quantidade, uma vez que os moradores a utilizavam para a alimentação de animais. Por outro lado, era expressiva a quantidade de restos de tecido, sapatos velhos, madeiras e restos de construção. Em virtude disto, a horta, implantada em terreno concedido pelo Departamento de Estradas Rodoviárias do Governo do Estado (DER), necessitava da importação de adubo animal.

A conscientização crescente da comunidade e a implantação do serviço de coleta, por outro lado, passou a ser um importante fator de saneamento. Os garis após o término de suas rotas, também passaram a realizar a limpeza das valas, desobstruindo os pontos críticos.

5.2 Bairro Monte Verde

A região do Bairro Monte Verde foi habitada inicialmente por descendentes de açorianos e era constituída de chácaras com atividades ligadas à criação de animais e à agricultura. No final dos anos 1980 a Companhia de Habitação do Estado de Santa Catarina (COHAB-SC) implantou naquela localidade, um conjunto habitacional com 400 casas, além de uma completa infraestrutura com escola, supermercado e centro comunitário, como parte de um plano voltado à redução do déficit habitacional na região.

Figura 3 – Compostagem
Fonte: Arquivo da Comcap.

Do ponto de vista geográfico, o bairro apresentou, desde logo, uma condição de risco ambiental, uma vez que estava localizado em um fundo de vale, com a ocorrência de transbordamentos do Rio Pau do Barco, que além do efeito provocado pela chuva, sofria a influência das marés. Tal condição motivou um maior engajamento comunitário através da Associação de Moradores do Monte Verde, na busca de soluções para seus problemas.

A organização social, liderada por seu Presidente, Sr. Edevaldo Zavarize, com o incansável apoio da Srª Denise Zavarise e do Sr. Luiz Cipriani, foi fundamental para a sensibilização dos moradores e implantação do Projeto. Aliaram-se à iniciativa a Paróquia, que cedeu a área para a implantação da compostagem e da horta comunitária e a direção da escola, que passou a incorporar a educação ambiental e a realização de oficinas com a utilização de materiais recicláveis.

Coube à Comcap a operação da coleta, com a utilização de um microtrator Tobata e uma equipe constituída de operador de máquina, dois garis e um responsável pela compostagem e horta. A Comcap disponibilizou ainda para o projeto sua equipe técnica com engenheiros sanitaristas, agrônomo e monitores que orientavam a compostagem, a produção de mudas e o plantio, além do registro dos materiais coletados.

5.3 Prédios da Av. Rubens de Arruda Ramos (Av. Beira Mar Norte)

Foram escolhidos, de forma aleatória, três prédios na Av. Beira Mar Norte – os edifícios Renoir, Baía Norte e Beira Mar para a implantação do projeto. Nestes, houve uma pequena mudança na estratégia operacional, pois se entendeu que era fundamental a participação do zelador no processo de coleta porta a porta. Para tanto, foi definido e aprovado pelo Condomínio dos prédios que o resultado da comercialização dos resíduos secos seria destinado ao zelador. Da mesma forma, também foram formadas as “Comissões de Saneamento”, realizadas as reuniões com os condôminos para apresentação da proposta e o monitoramento diário dos resíduos secos coletados. Os orgânicos, entretanto, continuaram sendo coletados pela coleta convencional da Comcap, em função da não disponibilidade de local para a compostagem.

O Projeto alcançou o surpreendente resultado com 87% dos apartamentos participando da separação dos seus resíduos, índice que teve um decréscimo nos meses de verão quando muitos dos imóveis foram locados.

Figura 4 – Vista aérea Beira Mar Norte
Fonte: Acervo Prefeitura Municipal de Florianópolis [Foto de Mauro Vaz].

6 CONSIDERAÇÕES SOBRE A INICIATIVA

As soluções convencionais parecem revestir-se de caráter apenas técnico e esperar da população nada além de colocar seu lixo ao alcance do sistema de coleta. Assim, os rejeitos são retirados da vida dos cidadãos, sem maiores implicações que o pagamento de taxas de coleta.

O descaso das pessoas para com o destino final dos resíduos sólidos parece estar relacionado a esses fatos e, por isso, o lixo urbano assumiu a problemática condição que hoje o caracteriza, aliás agravada pelos bens descartáveis e pelas embalagens de difícil degradação natural.

As dificuldades com o saneamento do lixo estão bem representadas pela poluição do solo, do ar e de águas, típica dos “lixões” e aterros sanitários, locais escolhidos para destino dos rejeitos. Surpreendentemente há, de modo geral, grandes quantidades de itens industrialmente recicláveis (latas, papel, papelão, vidro, plástico e outros) e orgânicos (restos de alimentos, cascas de frutas e outros), além de variável proporção de rejeitos inaproveitáveis (caliça, pedras, madeiras e outros) nesses depósitos.

O desperdício dos itens recicláveis eleva o custo da reposição de embalagens e outros produtos industriais e conduz a acréscimos da retirada de matéria-prima da natureza.

Iniciativas que envolvam a participação popular parecem oferecer uma alternativa ambiental e socialmente mais adequada, por darem lugar à educação popular e a mudanças culturais em aspectos relativos ao saneamento básico. No Brasil, empreendimentos dessa ordem passaram a ocorrer a partir do final da década de 1980, em algumas poucas cidades; em Florianópolis, desde 1986.

A organização de programas que mobilizem a população parece conveniente, não apenas para fomentar a participação dos moradores na vida comunitária, mas também, para auxiliar os cidadãos a compreender a relação entre as características do lugar onde vivem com seu comportamento.

A iniciativa aqui descrita teve, como um de seus objetivos, verificar a possibilidade e o modo como, porventura, se caracteriza a participação popular em ações sanitárias, para dar conta da disposição final dos resíduos sólidos urbanos, promovidas pelo poder público. Pretendeu também, colher subsídios para o conhecimento psicológico relacionado aos esforços coletivos para o bem-estar e para a implementação de estratégias para promover o envolvimento da população em assuntos importantes para a vida coletiva.

7 A CONTINUIDADE DO PROJETO

O projeto foi mantido, tanto no Morro do Mocotó, como no bairro Monte Verde, devido aos bons resultados, ao forte apoio das Associações de Moradores e organizações não governamentais que participaram ativamente de sua implantação. Em novembro de 1987, a horta no Bairro Monte Verde já produzia berinjela, pimentão, pepino, abóbora e milho, entre outras culturas.

A partir de 1987, o Projeto foi estendido, já com a denominação de Programa Beija-Flor, alcançando dez comunidades: Balneário do Estreito, Campeche, Morro do Horácio, Morro da Mariquinha, Morro do Mocotó, Morro das Pedras, Rio Tavares, Tapera, Monte Verde e Caminho da Cruz e, ao final de 1988, recebeu um aporte, a fundo perdido, do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), com o objetivo de levá-lo a outras 37 comunidades. A utilização deste recurso para outras necessidades da Prefeitura, entretanto, não permitiu sua ampliação. Independentemente disto, ao final de 1992, atendia cerca de 4.600 residências, recolhendo e processando 8 t/mês de materiais recicláveis e 5 t/mês de resíduos orgânicos.

Figura 5 – Divulgação do Programa Beija-Flor – 1988
Fonte: Arquivo da Comcap.

Uma de suas instalações mais significativas se deu em Jurerê Internacional, um dos mais importantes bairros da capital catarinense. A partir de um convênio firmado entre a empresa Habitasul, proprietária do empreendimento, a Associação de Catadores do Rio Papaquara e a Comcap, a coleta convencional foi substituída pelo sistema proposto no Programa Beija-Flor. Este sistema perdurou por cerca de dois anos e foi interrompido diante da necessidade de expansão do loteamento. De qualquer maneira, foi possível comprovar sua viabilidade também em uma região formada por pessoas de alto poder aquisitivo.

A partir de 1994, a Comcap universalizou a coleta seletiva para toda a cidade de Florianópolis, através de um sistema de coleta porta a porta, empregando caminhões do tipo baú. Atualmente cerca de 1.000 toneladas são coletadas mensalmente e destinados às Associações de Catadores, correspondendo a 6,5% do volume total dos resíduos domiciliares.

As imposições e as metas estabelecidas pela Lei nº 12.305/2010 – Política Nacional dos Resíduos Sólidos –, tem ensejado a busca de novas soluções tecnológicas, motivo pelo qual Florianópolis sediou, em maio de 2014, o 2º Congresso Técnico Brasil-Alemanha para a Gestão Sustentável de Resíduos Sólidos Urbanos, com uma grande contribuição para o aprofundamento da discussão sobre o tema.

Figura 6 – 2º Congresso Técnico Brasil-Alemanha
Fonte: Departamento de Comunicação da COMCAP.


Independentemente da busca de modernas tecnologias, o Programa Beija-Flor, mesmo passados 28 anos de sua concepção e aplicação, ainda apresenta um caráter de pioneirismo e se mostra como mais uma solução possível de ser aplicada em muitos dos municípios brasileiros, principalmente naqueles em que os “lixões” ainda são a única solução existente.

Em Florianópolis, técnicos da Comcap, do Centro de Estudos e Promoção da Agricultura de Grupos (CEPAGRO), do Laboratório de Educação do Campo e Estudos da Reforma Agrária (LACERA/UFSC), Grupo Alecrim de Agricultura Urbana, da Cáritas Regional Santa Catarina/Ação Social Diocesana de Florianópolis e da Associação Norte, reuniram-se em 29 de agosto de 2014, com o objetivo de discutir a implantação do Programa Beija-Flor na região do Rio Vermelho, comunidade com aproximadamente 13.000 habitantes e que possui cerca de 148 km de vias não pavimentadas, onde a Comcap tem sérios problemas operacionais de coleta, em função da precariedade do sistema viário.

8 CONCLUSÕES

Muito embora a implantação da coleta seletiva na Alemanha e no Brasil tenha sido iniciada com uma diferença de somente três anos (Alemanha a partir de 1983), a evolução deste processo foi muito diferente nos dois países. Lá uma visão mais pragmática promoveu a aproximação do meio acadêmico com a indústria, desenvolvendo diferentes procedimentos e tecnologias para a separação, classificação e reaproveitamento, tanto dos resíduos secos como dos orgânicos e rejeitos. A legislação da mesma forma tem acompanhado o desenvolvimento tecnológico e para 2015 já estabeleceu a universalização da coleta diferenciada do componente orgânico.

Por outro lado, é muito bom constatar a evolução no comportamento de nossa população, principalmente nas novas gerações, em relação aos resíduos que produzem. São inúmeras as oportunidades, formais e informais, para a discussão sobre os temas relacionados à conservação ambiental. A promulgação da Lei nº 12.305/2010 estabeleceu o marco regulatório necessário para que possamos, em um horizonte de médio prazo, reaproveitar adequadamente os componentes dos resíduos produzidos em nosso meio.

A Comcap vem trabalhando com dois cenários. Busca recuperar o tempo perdido, absorvendo as tecnologias já testadas e aprovadas em países que deram uma maior importância à questão do “lixo” e está resgatando a experiência exitosa do Projeto Beija-Flor, por ser uma solução simples, eficaz e adequada para algumas áreas da cidade. A grande diferença, é que hoje pode contar com um apoio de outras instituições, ONGs e voluntários que, como os protagonistas do Projeto Beija-Flor, acreditam que, havendo disposição para a mudança, é possível obter resultados sociais, econômicos e ambientais sustentáveis.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei nº 12.305, de 02 de agosto de 2010. Institui a Política Nacional de Resíduos Sólidos; altera a Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998; e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12305.htm>. Acesso em: 23 out. 2014.

CABRAL, Oswaldo Rodrigues. Nossa Senhora do Desterro. Vol. 1 – Notícias, Cap. 5º – O Duradouro Ciclo de Odores Fortes e das Pituítas Resistentes, páginas 169 a 206. Florianópolis: Lunardelli, 1979.

COMCAP – Companhia Melhoramentos da Capital. Disponível em: <http://www.pmf.sc.gov.br/entidades/comcap/>. Acesso em: 23 out. 2014.

O ESTADO. [Jornal] Edição de 16 de março de 1987. Florianópolis, 1987.


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Como citar [ABNT NBR 6023:2002]:

BAGNATI, Antonio Marius Zuccarelli; ABREU, José Luiz Crivelatti de. Programa Beija-Flor de Tratamento Descentralizado de Resíduos em Florianópolis-SC, Brasil. In: FRICKE, Klaus; PEREIRA, Christiane; LEITE, Aguinaldo; BAGNATI, Marius. (Coords.). Gestão sustentável de resíduos sólidos urbanos: transferência de experiência entre a Alemanha e o Brasil. Braunschweig: Technische Universität Braunschweig, 2015. Disponível em: <https://goo.gl/BE246I>. Acesso em: DD MMM. AAAA.
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